quinta-feira, 22 de novembro de 2007

JÁ NÃO HÁ CORAÇÕES ABERTOS

E, às vezes, nem fechados...


















1

Onde se esconde a página
que não encontro há horas
e quase me enlouquece?
Será que a provocar-me anda,
sem piedade e compaixão?

2

Encontrei um bocado da sua alma.
No lado esquerdo de uma gaveta velha,
cheia de sombras e meia torta.
Num dos lados, dizia:
regressa e escreve maravilhas.
No outro:
o teu destino é o nada


3

Fechei a página a duas voltas.
Um dia destes, levo-lhe água.

4

Não há mais esperas
para o que tem de ser.
Virei-me a sul,
acordei a norte,
agarrei-me a uma raiz.

O azul, lá em cima, disse-me:
anda!
E eu fui. Voei-me.


5

Mais do que deixar ir
e não mais ver
a sombra das palavras
morrem por falta de tudo
água perdida
braços fechados
olhar ferido
coração gasto
alma vazia

rasguem todas as páginas
(in)conjuntivas.


6

Um pouco mais ao lado
os limites do costume

pedem-me paciência
talvez tenha exagerado
os sonhos estão muito caros

tinha apenas pedido
que duas ou três palavras
entrassem de graça
no parque dos tolos

7

Resistem
emergem
vagabundas das esferas
e todos os lugares

Afinal
onde nascem
essas marotas?


8

Na margem
tudo acontece
mas é lá dentro
que o gozo reina
e a vida cresce
em espiral




9

Devagarinho
em bicos de dança
a última palavra
sentou-se a meu lado

Quando dei por ela
já tinha fugido


10

Não é fácil seguir linhas ténues
delicadas e sinceras
a gritarem
força força força
e nós ali parados
no meio da multidão
da noite
do desespero
como conseguem elas
despertar
tamanho suspiro
11

Não há escutas
nas linhas que desenhamos,
com os dedos,
na transpiração da pele.

Estamos,
apenas,
em companhia.


12

Onde o machado não corta,
a espada não separa,
a lâmina não decepa,
o alarme não avisa,
acamparam.

Será preciso falar de aventura,
onde ela cresceu, cresceu, cresceu
e é já um embondeiro florido?

13

Margem é o que alcançamos,
navegação após navegação,
pela página, a folha, a ponte,
até nos perdermos de vista.

No peito, o sol acordado.

14

Que olhar de fora fica,
quando o vidro se parte
e deixa de haver janelas?

15

Agora,
frio é esta recordação de não haver neve,
a geada nos galhos da árvore,
momentos de pedra sentada ao sol de outono,
a respiração do musgo em noites de dezembro,
e um esquecimento tão grande das raízes.

16

Que página escolher para colocar a noite,
os amigos, uma ternura desmedida?
Que folha escolher para colocar as palavras,
segredos, mil revelações por fazer?

Que página escolher para deitar esta indecisão?


17

gostava de escrever
todas as noites são modos de entender
a mais funda coragem das mãos
e escrevo
com as mãos se entende a mais funda
e irrecuperável coragem de transgredir
nenhuma lei é pró-natureza
sinto




18

que fazer das mãos?
onde colocá-las?
que fazer delas? com elas?

um espanto, as mãos!
tão limitadas...


19

levei as minhas mãos ao teu rosto.
levei as minhas mãos às tuas mãos.
levei as minhas mãos ao teu corpo.
e tu sorriste.

os milagres que as mãos fazem!


20

as mãos até seguram a cabeça.
pensam que seguram a cabeça.
mas a cabeça prende as mãos.

deixa a cabeça em paz.
deixa que as mãos sejam só mãos.


21

as mãos sobre o corpo
as mãos a sorrirem no teu rosto
no teu corpo

adoro as tuas mãos
são marcas são tempo são tuas
deixa as tuas mãos sorrir
para mim


22

apetece morder as folhas
porque não podemos apagar as palavras
fazer delas um incêndio uma inundação
e depois escrever tudo de novo
com os nomes que não soubemos nomear
com as imagens que não sabemos inventar
tudo mais e mais verdadeiro
verdadeiro e fundo
porque não podemos rasgar a carne os olhos
para podermos dizer uma vez pelo menos

viva a página
vivam os dias
vivam as mãos


23

Conheço-te há muito
de um reino estrangeiro
intimamente familiar.

A morada de nós próprios.





24

A memória dos fumos toscos,
- forno a lenha de pinheiros bravos,
em casa de minha avó.

A mulher entorna a água.
Farinha, copo e meio.
Na testa, superfície lisa de suor.
A memória do azeite vertido
para não doer, na cabeça, a vida.


25

Atado o nagalho dos movimentos,
o verde-verde da erva pergunta:
onde te encontras, prazer luminoso?

No moinho a roda quente move-se,
num gira-gira constante,
em torno do centro do seu mundo.


26

A lembrança da erva, do orvalho medido,
levam-me ao lameiro, aos tremoços,
ao lugar primeiro do sonho suspenso.
Será que a erva se lembra
de todos os amores proibidos?


27

E o milho chegou. Por vezes, filho-rei.
Maduro de colorido mágico.
Uma espera de maravilhas.
Raras. Simples. Milho-rei.
E o beijo da candura encontrada.


28

Como é belo o momento do encontro.
Nem sempre no lugar certo.
Nem sempre no atempado tempo.
Mas nem o sussuro das fontes adivinha
a altura em que o cântaro chega
para recolher a água.


29

Caminhos de fogo e luz,
montanhas frente ao inteiro nome,
um olhar imenso sobre a serra.

Será aqui o cume do sossego?
Ou a inquietação começa
onde a neve nunca acaba?


30

Uma balada permanece nos olhos.
Aflora-me aos lábios.
Não me larga tarde inteira.

O vento sopra de norte.
Uma nuvem passa sobre a minha cabeça.
Vamos ter chuva.
31

Fico a olhar o declinar do dia.
Que pôr-do-sol,
com cidades e cavalos a trote!
Imaginação tua, dizias…


32

Encontrámos aqui o vinho, o gelo, o copo, o silêncio,
num lugar ermo de terra feito e madeira velha por tempo:
o ressuscitar dos nossos sentidos e voz;
A escrita germinando
nos degraus húmidos do resistir.

Não há inverno nem verão. Ninguém fala.
Escuta-se o rumor do vento, se o vento sopra,
o silêncio da casa, da amphora.
E há vinho: natureza fresca.
E há mel, recolhido cuidadosamente no ano anterior.
Encontrámos aqui o vinho, o gelo, o copo, o corpo.
E fizemos amor.

33

Que casa querer depois desta casa?
Que corpo desejar depois do corpo ali?


34

Molhámos os corpos nos riachos gerados
no interior da neve e da montanha,
irmanados naquela mútua recompensa de gurgitares:
nós e as fontes; nós e as pequenas quedas de água,
no verdadeiro silêncio da terra.


35

Não havia memória.
Havia chão.


36

Às vezes, sentávamo-nos nas gotas de orvalho,
suspensas na relva e revíamo-nos nos espelhos
das nuvens dispersas, vagueando em sonhos.
Adormecíamos, por vezes.
Acordávamos tão leves...


37

O frio não era motivo de abandono.
Habitávamos a casa, as réstias de sol,
a luz matinal coada na limpidez do espaço.
Fazíamos o jogo paciente da aranha
tecendo a sua rede.
Seguíamos-lhe os movimentos.
Apreciávamos a lentidão das suas esperas.
Sentíamos pena das suas vítimas.
Como libertá-las,
sem quebrarmos os ténues braços da prisão?


38

Era o equilíbrio natural que absorvíamos.
Amávamos. Conjugados no todo
de um ambiente primordial.
E quem somos, para podermos quebrar
o sossego da harmonia,
construída em todos os recantos
deste terno e pequeno mundo?
Sentávamo-nos, por vezes, no musgo.
Na frescura da terra semeada de pinheiros.
Viajávamos, depois, aos confins do eco
e nossas vozes regressavam mais quentes.
De amor.


39

E quando a mágoa espreitava sob um sorriso,
dizias somente:
a noite só vem
quando os olhos se fecham
de cansaço.
Antes,
é a sempre e repetida loucura
dos encontros sem fim,
sem fundo,
no outro lado do mundo.
40

Era a manhã vinha ao nosso encontro.
Em busca de um beijo húmido,
nascido no interior da noite.

Caminhava pela madrugada preguiçosa
e removida das entranhas do desejo.
Amanhecia.
Ou eras tu que caminhavas
à procura de um silêncio
envolto em nevoeiro matinal?


41

Respiravas sonhos inteiros
à medida dos teus olhos erguidos
na direcção da luz.

Havia um sol razante no arvoredo.
Um reflexo enorme na tua mão.
E o frio ainda não tinha nascido.

42

Brilhavam auroras nos teus olhos.
Nos teus cabelos batia o vento.
E as searas permaneciam atentas
ao lento declinar da tarde.

Um sentimento natural unia-nos
ao cheiro cinzento da terra.

Como penetrar a penumbra do sol,
sem desperdiçar o tempo da erva?


43

Baixo os olhos à torrente de água que nos liga.
Os teus olhos prendem-se atentos
ao lento declinar da tarde
e espantam-se.
A água não mais é cor de água.
Transporta, num turbilhão de nervos,
o nosso sangue,
à procura de repouso
no interior mais fundo da terra.


44

Uníamos o cheiro da terra
ao intenso florir dos nossos olhos,
no espanto natural de termos mãos.


45

Sei que o livro dormiu a meu lado.
Mas, de repente, fugiu.
Não o encontro
e nem sei onde se escondeu.
Ajudem-me!


46

Dizia-me um amigo
há coisas do diabo!
Há, perguntei.
Sim, confirmou.
Confirmou e acrescentou
nunca que fies no demónio.


47

Sei que escrevi no livro perdido
qualquer coisa como:
já montámos as nossa defesas.

É mentira! Redonda, quadrada,
ou aos paralelipípedos,
- granito puro e tudo.

Sei-o, hoje,
foi um engano tê-la escrito.


48

Nem de propósito,
a quadragésima oitava
veio parar-me às mãos.

Ainda quente, a ferver.
Como dizer,
como pegar-lhe?

Não acham que o menino Mozart
devia estar sossegadinho,
a dormir a sesta,
no céu de tubas?

49

Dizem que esta magia
nasce do sofrimento
e da dor de seres
que até gostam de fingir.

Talvez tenham razão.
Mas também nasce
da alegria, da música
e de um doce espanto
por estarmos aqui.




50

Passei a tarde a perguntar
a mim mesmo
que raio de palavra é essa
que se afirma como trabuco.

Já deitado, voltou a bater.
Levantei-me. Fui ao dicionário,
Também conhecido por pai dos burros.
E não é que estava lá!
Precisava tanto de um trabuco…


51

En passant…
(desculpem esta francesada),
descobri uma nobre palavra,
oriunda da zoologia:
tragúlidas.

Conhecia coisa parecida.
Igualmente do nosso jardim.
Mas tive de fechar o dicionário.
Logo de seguida,
a palavra era traição.


52

Nada faz mudar
este teimoso mundo.
Nada.
Nem as velhas guerras.

Cá em casa,
chamamos-lhe
personalidade.


53

Parece
que com minas e armadilhas
nos vão entretendo ao jogo
do gato e do rato

cá por mim
prefiro uma do nuno
que nem de bragança era:
eu-lebre
desafia sempre
o caçador-mim


54

Estou a ficar velho,
sem a senhor vinho do porto
ter chegado.
E eu que queria aportar…

Claro, não digo onde.
Mas, também,
por vezes, o tal vinho
do porto não é!





55

A memória é o que nos resta.
Ouvi isto, um dia destes,
a alguém que não conheço.
Pouco depois,
fiquei a observar um míope
que vasculhava no lixo.

Seleccionava jornais e revistas.
Revistas e jornais.
Pareceu-me um velho conhecido.
Seria ele-mesmo?

Faltou-me a coragem.
Estou a ficar cegueta.


56

Cada cousa em seu lugar,
e assim é que está bem.

Se ainda me lembro,
era um coro a duas vozes.

Digo bem: era!
No momento em que ruminava,
a solo, o dito,
a estante maior da sala
caiu em cima de mim.

Fiquei, curiosamente,
com a cabeça
na prateleira da ficção científica.


57

Lembro-me muito bem.
Era para ir dormir.
Fiquei-me pelo acordado.

A quem pertence a culpa?
A um simples e miserável
mosquito africano.

De tão perigoso,
provoca paludismus phalsiparum.

Ou se dorme para sempre.
Ou nunca se dorme.

Mas a pancada foi tão forte
que me apanhou dos dois lados.


58

Andam todos à procura
da lógica de Abril.
É simples.
Nem cravos mil,
nem chuvas miudinhas.
Primavera, sempre.

E ainda querem
que a gente
acredite em revoluções...



59

Um dia hei-de morrer.
Gostava que fosse no teu regaço.

Sei que não acreditas.
Não queres. Nem podes.
E também não posso
prometer-to...

Como sabes,
é normal morrer-se
de surpresa.

Queria, tanto,
morrer no teu regaço.


60

Se ainda há esperança,
está num pequeno fio de cabelo
que guardo dentro de mim

a dizer
amanhã é páscoa
é páscoa

com música
de gershwin.


61

Se não fosse recear
algum colapso cardíaco,
esta noite dormia na banheira.

Eu disse
colapso?

Estava a ouvir
a sirene dos bombeiros.

Era, apenas,
uma inundação.


62

Se é uma arte, não sei.
Nunca tal interrogação
me tinha colocado.

Nunca.
Achas, então,
que é uma arte sacudir
ou acudir
aos pesadelos do mundo?


63

Pois, é assim.
Por vezes, o coração aperta.
É normal, dizem

Dizem, até,
que é por aí que a paixão começa.

É pena,
talvez por humana ignorância,
nunca afirmarem onde,
infelizmente,
ela termina.

Desconfio da foz de um rio
que eu cá sei.


64

Foi no sul que comecei a sonhar.
De verdade, foi aí.

Até então,
o meu espaço imaginário
não ultrapassava Santarém.

E era
tão longe…


65

A automotora atrasou-se,
perdi a tua morada,
não tinhas telefone…

Como encontrar-te,
neste cruzamento de linhas
todas iguais e perigosas?

Entretenho-me
a jogar às cinco pedrinhas,
enquanto os emigrantes vão
e voltam
num sud-express mais cinzento
que a minha alma.

Prometo que hei-de voltar
a encontrar-te.

Aqui?


66

Estou de férias.
Não me falem de amor,
nem de latim.

Estou de férias
e, em férias, quero continuar.

Até estou bem de mim!
Chamem-me para os matraquilhos.
Quando o Eusébio jogar.

Fora isso,
e os caracóis,
temperados à mestre António,
deixem-me ler,
dormir,
ir à praia
e ouvir o sargento pimenta
na rua doutor antónio oliveira salazar.


67

Da graça, poucos se alimentam.
O que não é o meu caso.

Sempre que dela fugi,
na esquina próxima a encontrei
e destino parece.

É assim que ando descalço
e jamais me calcerei.

Por ela, dou ténis e sapatos,
todas as gravatas do mundo
e, até, a minha tulipa negra.

Só não me peçam que vá à China.
O meu passaporte caducou…


68

Mas quem te perguntou por mim?
Abril já vai longe.
Há quanto os cravos murcharam…

(Já agora, uma pergunta secreta: donde vieram tantos cravos?
As vendedeiras foram avisadas?)
E não te preocupes.
As minhas rosas tinham secado,
na semana anterior.

Posso jurar-te:
não foi por falta de água. Não foi!
Quem perguntou por mim?


69

A lagoa está linda.
A Nave Mestra convida a acampar.
Agosto vai findar-se,
mas é bom estar aqui.
Bom ar, boa água.
Estamos no tecto do mundo.
Não temos violinos nem pianos.
Bom queijo e pão
não nos faltam.
E, uns lunáticos do ozono,
fazem-nos crer
que há eternidade.

Gente louca da capital
que não sabe caçar
gambuzinos.


70

Não tenho pressa.
Só não percebo
por que é que a polícia
corre
atrás
de mim.


71

Fui à fonte da virgem
e adorei.

Água pura e deliciosa,
sem necessidade de cântaro.

Vim com fome de mais.
Mesmo que o fogo destruisse rosas.
Nunca gostei de armas,
nem de guerras.

Mas eu só vi ervas…


72

For a de portas me levaram.
E eu não delirei.

Mas gostar, sou sincero,
não gostei.

Havia muita balbúrdia e confusão.
Para o meu gosto,
o meu sentir disse logo não.
Afirmei-o de voz viva.
Pediram-me calma.
Foi pior.

Saltei o muro e fugi.
Ainda hoje andam à procura
De mim.
73

O que são lágrimas?
Água e cloreto de sódio.
Lembras-te do António?
Pois é.

O resto é um quase nada.
Um coração branco,
amarelo, azul, vermelho,
ou negro, a pedir
um bocadinho de musgo
ou…
a pedir mais e mais.


74

Um dia hei-de imortalizar-te.
Será que o não fiz, já?

Noutro dia, vou dar-te tudo.
Será que ainda não te dei?

Amanhã outro dia vai chegar.
E, eu, vou repetir-me.


75

Sempre falei de cor e salteado.
Não é bom modo de falar?

É já madrugada e os galos cantam,
regurgitando como as fontes.

Foi numa delas que te conheci.
Há quantas memórias e anos?


76

Só agora recebi a tua carta.
Parece que andou perdida.

Mas antes chegar tarde que nunca,
mesmo que a meio da manhã,

que é a hora do nosso carteiro
distribuir novas esperanças.


77

E eu a pensar que tinha perdido
o meu baú de remédios.

Disse: remédios?!
Queria dizer: milagres.

No meu baú há de tudo. Sabias.
Como na farmácia Eustáquio!


78

Parando ou não, é o mesmo.
Em dias de chuva, molhamo-nos.

Foi o que me aconteceu.
Só que era de mais: constipei-me.

É normal, dizes. Eu disse o mesmo.
Em dias de chuva, a ternura
também acontece.


79

Fiquei a olhar um raio de sol.
Gostava de poder colhê-lo

e trazer-to, no meu bolso roto,
para poder revelar-te

a minha muita falta de jeito
em dizer, apenas, amor.


80

Desconfio da lua e de marte.
Por ali, andam enganos.

Não sei de quem é a culpa.
Nem perco tempo a descobrir.
Se nos astros é como na terra,
desconfio dos homens!


81

À lua já fui e voltei,
sem qualquer dificuldade.

A marte ainda não cheguei,
por falta de combustível.

Voltei atrás, perigosamente,
e não me refiz, ainda, do susto.


82

Perguntaram-me, há dias,
como ia o meu rio.

O Tejo?
Que não, disseram.
O da minha aldeia?

Mal. Mesmo muito mal.
Tal como o Tejo, e o Alentejo.


83

Jurava que já tinha dito isto.
Parece que não.

Será necessário nascer-se
do mesmo pai e mesma mãe,

para nos sentirmos
verdadeiramente irmãos?


84

Cada coisa no seu lugar, diz a Maria, que é sábia.

E, quando nos esquecemos do lugar, as coisas deixam de existir?
Que não, responde a Maria.
Ficam só e simples coisas.
85

Entre a realidade e a ficção,
que espaço fica?
Que tempo podemos medir?
Algum mícron de segundo?

Dizem: uma eternidade.
Desisto de medir.


86

Finalmente, uma lua cheia
no dia do meu aniversário.

Já tardava ver a lua assim,
numa curva do tempo…

Já tardava, e há muito,
o boomerang de mim.



87

Afinal,
o azul do céu é falso.

Uma simples relexão científica
desvendou-nos o mistério.

A partir de agora,
os anjos deixam de ser brancos.


88

Mais perguntas, a uma hora destas?
Ainda por cima, em tempo de Páscoa?
Que sim, afirmaram em uníssono.
Poderia ser, até, Natal,
responderam.

Fui à varanda e semeei coentros!



89

aqui, onde o silêncio se instala
e os nervos pedem água
aqui
começa a terra que a lua
desconhece
aqui
onde parece pouco haver
para dar
é o azul da esperança
que resiste
aqui
entre o cinza das tardes
e o sol que volta
a brilhar teimosamente
nas manhãs que se seguem
aqui

será que ainda há gaivotas no tejo?




90

Junto de novo a mão direita
à sombra do ombro
que me ampara
desconheço a trajectória dos sonhos
que se foram

há uma arte de falar
desta ânsia que se instala
no centro do grito
deixem que as mãos se unam
que as crianças gritem
e saltem em tentativa
de apanharem o arco-íris
do espaço

será que é proibido
desejar o azul
nos teus olhos?




91

Conhecem o amor e a paixão
simples os olhares puros nas fontes
a frescura permanente da terra
os arbustos que florescem
em cada primavera
não conhecem as cidades
para quê
se tudo aqui é miséria
multiplicada por decreto


92

Os cumes das montanhas bailam connosco
vêm ouvir-nos entoar as canções
que amamos no entendimento das mãos
e ouvidos e estultos sentimentos de agora
depois erguem-se um pouco mais
e de novo nos espreitam e perguntam
como é possível estarmos aqui
e elas lá em cima
onde o sol é meigo
e o corpo mais leve se torna
riem-se
não conhecem a nossa dificuldade
e a rir amigos se tormam
da nossa tentativa


93

regresso ao teu olhar
quero colher-me de ti
entender as canções
que trago escondidas
e não sei revelar

colhe-me tu também
inventa o banho mais seguro
para recuperar este embalo de doidos
na noite mais longa
das mãos dadas em direcções
todas as direcções
sem preço


94

e não nos dão sossego
avança
entra
está aqui o banquete

víboras
abutres
papagaios do desespero
não nos dão a lua
não nos dão momentos
não noa apaziguam
as mágoas


95

ah esta coragem
a raiva
em desconcerto com o tempo
que não se acalma
mais e mais
e cresce
e ganha proporções
de loucura maior
perante tamanha potência
dos homens
só o negócio conheço


96

uma música quase de anjos
chega-me da tua voz
suspensa na árvore
que deu flores
coloridas
intensas e quentes
quase em chamas
simbiose da dor e do orvalho
em manhãs dias noites
e tardes de insónias
por desvendar
que música
que estúpidos
os anjos

97

um grito levanta-se da noite
para dizer
quebra todas as barreiras
destrói todas as prisões do medo
os silêncios inúteis
imerecidos
em tempo de lua cheia
lança-te nessa maré de luz
e colhe fios de areia fina
faz colares de cristal
e oferece-os à vida


98

Há uma dor
que não tem limite ou cura
não não tem

cravada no mais fundo da loucura
sobe à garganta
invade a mão
é como se estivéssemos possessos
e sem nada possuirmos
a não ser essa dor
que não tem limite ou cura

apenas um sorriso
inesperadamente aberto


99

ficar
ou ir contigo

a diferença
entre encontrar-me
e perder-me

onde
não sei se estou




100

queria prolongar-me na paisagem
que no interior existe
do teu olhar intensamente luminoso

penetrar na insondável floresta
que em ti se alimenta
nas verdes fibras
inquebráveis teias
de abraços tenros
em primavera de beijos

por vezes
em ti


101

perpétua é a sombra
porque há luz
e o silêncio habita
onde não chegam
os passos
102

dos teus olhos
salta a onda de terra
que rebenta
em minhas mãos


103

às vezes os olhos são felizes
correm pelo rosto
baixam ao peito
erguem-se à chuva
lançam-se ao mar

procuram lágrimas perdidas
das longas ausências
sem desespero

às vezes os olhos são felizes
e fazem milagres em segredo


104

dos teus ombros
corre a água fértil
fresca sossegada

a água do espanto
e da surpresa

dos teus ombros
a esperança
dos momentos que são lua
e recompensa
de tudo o que possa falhar

dos teus ombros
a beleza
de todos os percursos
que são olhos
e fonte
de mistérios

de ti

105

rompo todos os limites
o início de uma loucura nova
em veias repletas de segredos
e sombras

de homem


106

não mais ao tempo
nunca a esta memória
que se entrelaça e consome
como se fosse alga
nem quente nem fria
no meio da noite vazia

regressa já alegria




107

como a pedra
também o rio
à procura
do equilíbrio

sexta-feira, 6 de julho de 2007


Mais um punhado de terra
faz tanta falta à morte...

terça-feira, 26 de junho de 2007

Hoje não é dia de salvar vidas.
Demiti-me de ser bombeiro.
A fuga exemplar não deixa marcas.
Foi assim que o mário salvou algumas vidas.



sexta-feira, 15 de junho de 2007


ODESSA


Fourteenth of February, eighteen ninety-nine,
the British ship Veronica was lost without a sign.
Baa baa black sheep,
you haven't any wool.

Captain Richardson left himself a lonely wife in Hull.
Cherub, I lost a ship in the Baltic sea.
I'm on an iceberg running free.
Sitting, filing this berg to the shape of a ship;
sailing my way back to your lips.
One passing ship gave word that you have moved
out of your old flat,
you love the Vicar more than words can say.
Tell him to praythat I won't melt away
and I'll see your face again.
Odessa, how strong am I?
Odessa, how time goes by.
Treasure,
you know the neighbours that live next door,
they haven't got their dog anymore.
Freezing, sailing around in the North Atlantic,
can't seem to leave the sea anymore.
I just can't understandwhy
you just moved to Finland.
You love that Vicar more than words can say.
Ask him to praythat I won't melt away
and I'll see your face again.
Odessa, how strong am I?
Odessa, how time goes by.
Oooh, ooooh....

Fourteenth of February, eighteen ninety-nine,
the British ship Veronica was lost
without a sign.



POESIA & MATEMÁTICA

(A partir de uma excelente conversa,
made in Antena 1, 15/16 junho 2007)



liberto-me
ganho asas
levanto voo

como se libelinha fosse

paro no lago
busco alimento
sigo em frente

como se aelvagem fosse

solto-me
sou livre
assim quero

caio na armadilha

preso fico
tento levantar-me
faltam-me forças

com que então
querias voar
insistem

liberdade frágil
aparente
democracia

viva a câmara
de lisboa


(Inteiramente dedicado a Jorge Nuno Silva
e, por tabela, a João Pedro Neto e José Luís Fachada.)

terça-feira, 5 de junho de 2007



COZIDO À PORTUGUESA


O cozido à portuguesa é um prato rico e suculento que constitui uma bela refeição.
Nele podem entrar todas as carnes, incluindo carneiro e aves, tal como toda a espécie
de enchidos e legumes, de acordo com a época do ano e a região onde é confeccionado.
O verdadeiro segredo do cozido é simples:
quanto maior for a variedade de ingredientes melhor.
Ingredientes propostos
Carnes: Cabeça de porco, orelheira fresca ou fumada, chispe, entrecosto, carne entremeada, toucinho e/ou bacon, presunto, chouriço de carne e de sangue, morcela, farinheira,
salsichas frescas, carne de vaca para cozer, galinha ou outro tipo de ave.
Legumes: Couves, cenouras, batatas, nabos, feijão verde, cebolas e/ou outros.
Tempero: Sal e azeite, a gosto.

Confecção
Numa panela grande, cozem-se em água todas as carnes. No caso de se utilizarem carnes salgadas, devem ficar de molho algumas horas.
Por ordem da rapidez de cozedura, vão-se tirando os enchidos, as carnes de porco e de aves. Por fim, depois de bem cozida, a carne de vaca.
Na água das carnes, cozem-se os legumes. Após cozinhados, retira-se a panela do lume, deixando repousar para ganharem sabor. Entretanto, cortam-se as carnes e os enchidos que se colocam em travessa seleccionada para o efeito, juntando-lhes os respectivos legumes.
Acompanha com feijão branco, de preferência cozido na água dos legumes, e arroz branco ou de sustância.
Da água do cozido pode fazer-se uma saborosa sopa.

Arroz de sustância
Refogam-se fatias de toucinho, de presunto, cebola picada, alho, louro e carne de vaca, sempre em lume brando, até tudo aloirar levemente. Em seguida, vai-se adicionando a água do caldo de legumes aos poucos. Para duas chávenas de arroz bastam seis de água. Tempera-se com sal, pimenta e raminho de cheiros.
Levanta-se o lume para temperatura média, até o arroz cozer e ficar enxuto.
Antes de servir, tirar o louro e o ramo de cheiros.


Bom apetite!